Flavio Cruz

O incrível game “Crazy Rabbit”

 
Lucille e seus dois filhos estavam sentados na recepção da IEE, International Entertainment Enterprises, quando foram chamados para entrarem na sala de reuniões da empresa. Após cumprimentos efusivos, todos se acomodaram e o senhor Preston começou o seu pequeno discurso:
-Em primeiro lugar, quero cumprimentá-la, sra. Medina, pela sua sábia decisão.  Pensar no bem-estar da família, neste momento de dor e sofrimento, é uma coisa nobre. Colocar o futuro de seus filhos na frente de conceitos comuns, populares, é coisa de gente que tem dignidade.
Lucille deu um sorriso indefinido, que continha certamente uma boa dose de constrangimento.
Não muito longe dali, no grande centro de testes e criação, Angel estava tendo dificuldades em entender o que estava acontecendo. Em primeiro lugar, todos o chamavam de “Crazy Rabbit” e isso era muito esquisito. O que mais o incomodava, porém, era o fato de que perdera o controle do que estava fazendo. Em outras palavras, ele queria fazer algo, mas alguma força maior o obrigava a fazer outra. Tinha completamente perdido sua capacidade de decisão.
Tudo começava sempre num grande corredor com inúmeras portas dos dois lados. Ele precisava abri-las. Não queria, mas precisava. Tinha de achar material para se proteger: escudos, capacete, um minicarro blindado, roupas especiais, etc. Mas isso era difícil de se encontrar. Cada vez que abria uma porta, havia uma ameaça, um perigo. Numa, um bando de cães ferozes e famintos, noutra, um gigante mal encarado, que o queria esmurrar. Mais na frente, uma outra porta dava num abismo onde ele quase caía. Da última vez que ele abriu a porta, ele estava desconfiado, iria ser fatal. E foi. Havia vários atiradores e ele não teve chance. Uma bala penetrou seu coração. Pensou ter morrido, mas não. Lá estava ele de volta, para o começo do corredor.
Tinha decorado algumas portas perigosas e uma boa, que tinha um capacete, que ele ficou com medo de pegar. Desta vez, ele seria mais esperto. Foi evitando as portas ruins e foi direto à porta onde estava o capacete. Quando ele colocou a mão para alcançar o seu “prêmio”, uma cobra, que estava embaixo, tentou picá-lo. Ele conseguiu escapar. Assim que começou a abrir mais uma porta, lembrou-se de que já a tinha aberto antes e que lá havia um abismo, perigoso abismo. Para sua surpresa, entretanto, um capacete dourado rolou a seus pés. Imediatamente agarrou-o. Sabia que tinha de se proteger melhor antes de ir para a porta do fundo do corredor, mas já estava cansado e correu até lá, assim mesmo. Dava para uma grande avenida. Das janelas, pessoas atiravam, tentando acertá-lo. Pensou em retroceder, mas alguém tinha jogado, logo mais à frente, uma roupa, que ele sabia ser para sua proteção. Correu até ela, mas antes que pudesse pegá-la, levou um tiro no pescoço. Sentiu o sangue quente escorrer pela pele. Tentou levantar-se, mas desmaiou. Quando acordou, estava novamente de volta ao início de tudo. Agora sabia que as portas mudavam seu conteúdo, não adiantava decorar o que vira antes. Crazy Rabbit estava ficando desesperado por um lado, mas por outro, sabia que sempre podia recomeçar.
Na outra sala, Preston continuava seu discurso:
-Apesar de toda a evolução da Medicina, como essa técnica de reconstruir órgãos, refazer completamente o corpo, infelizmente, no caso de seu marido não foi possível. Seu corpo foi queimado a um ponto além da capacidade da tecnologia de reconstrução. Quase por um milagre, boa parte de seu cérebro ficou imune. E o que a senhora fez, parabéns novamente, foi uma coisa admirável. Permitir que ele fosse utilizado numa coisa útil. É quase o mesmo que doá-lo para a Ciência. Neste caso, com uma vantagem. Uma grande soma de dinheiro que vai garantir o futuro de seus filhos. Tenho certeza de que o senhor Medina, se pudesse, estaria aprovando o que a senhora fez. Que pai não quer o bem de seus filhos? Além disso, vocês todos devem se orgulhar. O senhor Medina é pioneiro. É a primeira vez que um jogo online tem a participação de um cérebro vivo. É como jogar com um ser de histórias em quadrinhos, porém vivo. Ele vai ficar na história da evolução dos jogos. E a senhora sabe como é importante para a nossa sociedade, hoje em dia, a criação de novos “games”. Precisamos de diversão, ocupação. Nosso povo inteiro, não só os jovens, correm um grande perigo de entrar em depressão profunda. E a solução que temos hoje, além dos jogos, qual é? Drogas violentíssimas, nada mais. Os jogos virtuais online são a nossa grande salvação.
A essa altura, o senhor Preston percebeu que estava exagerando e achou melhor ir para a parte econômica. Preparou-se para declarar o valor que estava oferecendo, agora que já estava claro que o cérebro de Angel estava funcionando perfeitamente para seu intuito.  Pegou o cheque nas mãos e antes de revelar o valor, deu mais uma espiada no cantinho da tela de seu computador. A quantidade de internautas que estavam participando do jogo online “Crazy Rabbit”, naquele exato momento, era de 11.349.177 participantes. Aquilo era um recorde. Havia alguns que já estavam no jogo há mais de 17 horas sem parar.
Por outro lado, finalmente, Angel – o “Crazy Rabbit” – tinha passado da fase dos corredores e da Grande Avenida, sem levar tiros ou ser ferido, e tinha atingido um terceiro nível. Ficou sabendo então quem era o seu “companheiro” de luta: o finlandês Kaaprel Ikola, 33 anos. Foi aí que ficou conhecendo o grande desafio. Uma grande área, inóspita, cheia de perigos e adversidades teria de ser atravessada para enfrentar o desafio final: chegar até a “Taça do Prazer”, cheia até a boca com um líquido azul e que estava colocada sobre um pedestal. O problema era que este estava sendo guardado por uma mulher vestida de preto e com um lenço azul na cabeça. O rosto da mulher mudava, de acordo com o participante do jogo. Para ele, Angel, o rosto era de Lucille. E ele sabia que isso iria ser um grande obstáculo. Ele teria de matar aquela mulher para chegar até a taça. E, ele repetia para si mesmo, ela tinha a face de sua mulher. Antes de começar a travessia, Kaaprel Ikola, que estava liderando o jogo, optou pela opção do espelho. Angel teria de olhar para o espelho, bem ali a seu lado, para adquirir força. Assim o fez, mesmo porque Kaaprel é quem decidia. Ficou admirado e confuso quando, ao invés de ver seu rosto, via a cara de um coelho maluco. O coelho falava alguma coisa com os lábios. Angel não tinha certeza, mas aparentemente, ele estava avisando para ele que não tinha mais corpo ou rosto, por isso precisava da cara dele, do “Crazy Rabbit”. Angel Molina não entendeu bem o que ele queria dizer, mas podia sentir a vibração do finlandês quando aqueles pontos todos foram acrescentados no seu “chart”, só por causa daquela olhada no espelho. E iniciou a perigosa travessia.
Alheio a esses detalhes, finalmente, o senhor Preston anunciou o valor do cheque: cinco milhões de dólares. Nem a Lucille, nem seus filhos, conseguiram disfarçar a surpresa e a alegria. Pelo menos, naqueles momentos, ela se esqueceu do marido Angel. Mal podia acreditar no valor que estava ouvindo. Pegou o cheque, conferiu, agradeceu e saiu com as crianças.
No caminho para o carro, foi falando com as crianças, o que na verdade era uma justificativa para si mesma:
-O seu pai deve estar feliz. Tenho certeza que sim. Ele sempre dizia que a coisa mais importante do mundo para ele eram vocês. Que ele faria qualquer coisa...
No seu subconsciente, uma voz martelava insistentemente: “um cérebro de 5 milhões de dólares, um cérebro de 5 milhões de dólares...”
Lá, no mundo dos jogos, Angel Medina ainda lutava consigo mesmo. Tinha sido programado para pensar que, se matasse aquela mulher e conseguisse a taça, seu companheiro de lutas, Kaaprel Ikola, poderia beber da taça e ele, poderia voltar a sua vida normal, viver como um pai de família, etc. Mas ele jamais voltaria. Voltaria sim, mas para o começo do corredor, onde recomeçaria a luta. Aí, porém, não se lembraria de mais nada e seria um novo jogo. Por enquanto, tinha decidido que iria assassinar a mulher com o rosto de Lucille, ele precisava fazer isto. E foi o que o Crazy Rabbit fez. O sangue estava correndo pela face lívida da mulher, mas, a essa altura, Angel Medina, o Crazy Rabbit, já estava de novo no começo do corredor, reiniciando o jogo, com outros milhões de participantes.

 

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Published on e-Stories.org on 15.07.2016.

 
 

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